No início era o pixel

por Gustavo L. Pozza

Tratar sobre filosofia da fotografia me obriga a, com certa frequência, lembrar meus interlocutores de que, assim como todas as grandes mudanças tecnológicas, a fotografia causou alterações tão profundas na percepção que, por mais que tentemos, é impraticável que se entenda o mundo como já tendo existido de outra forma. Tal como a invenção da prensa de Gutenberg expandiu o conhecimento teórico e, mais recentemente, a internet modificou as relações sociais, a fotografia interferiu na maneira como percebemos a realidade e como nos expressamos no mundo-imagem por ela criado. Muito embora se possa argumentar que a expressão pela linguagem visual já era intrínseca à existência na modernidade, é com a fotografia que a ilusão – porque tida superficialmente, não necessariamente, por ser falsa – de um mundo percebido e manifesto pela imagem se concretiza.

Mid Summer Madness Party. Foto de Martin Parr

Mid Summer Madness Party. Foto de Martin Parr

John Berger afirma que só vemos aquilo para que olhamos. Antes que se perceba algo, é preciso que sua existência esteja registrada, mesmo que de maneira imprecisa, na nossa mente. Perceber significa ser capaz de identificar, de, mesmo que ainda sem poder descrever, isolar, de apontar para algo que, de outra forma, se perderia na trama de percepções sensíveis da realidade. A fotografia aponta. Desde que surgiu, a fotografia inevitavelmente isolou naquilo que registrou aspectos perceptivos que até então não faziam parte do repertório de seus espectadores. E esse apontar da fotografia se mostrou tão profícuo exatamente por dispensar o verbo. Antes da comodidade do registro mecânico, apontar exigia nomear. Identificar algo do mundo percebido implicava comunicar ao outro, organizar a percepção em forma de palavra para que se pudesse expressar – isto existe assim.

O verbo deu lugar à imagem. Expressar pela fotografia já não demanda que se converta o sensível em comunicável. Não se espera que o espectador possa detalhar os acontecimentos da imagem que vê, mas sim que perceba, que participe da expressão com seu sentir, com sua memória. Se a demanda da comunicação ao outro carregava em si a comunhão da percepção, a subtração da etapa não distancia o espectador, mas o aproxima pela participação. Descobrimos juntos com Capa, ad infinitum, o último soldado morto em Leipzig.

Sleeping by the Mississipi. Foto de Alec Soth

Sleeping by the Mississipi. Foto de Alec Soth

A crítica de Scruton a Cartier-Bresson, de que se poderia substituir a fotografia de rua por uma moldura pendurada em um lugar da cidade, erra por não considerar o alicerce da expressão fotográfica. Tais imagens não são um testemunho histórico, um turismo pela imagem – das quais voltaríamos com algum souvenir barato na memória – mas uma oportunidade de, pelos olhos de quem a registrou, experienciarmos a percepção de apontar, pela primeira vez, àquilo que a fotografia registrou. O fotógrafo ciente da expressão que a imagem carrega, dispara seu mecanismo não ao que declara, ao que comunica simplesmente, mas ao que expressa, à imagem que levará, para além daquilo que julga ser a realidade, a percepção que tem naquele instante.

Como afirmei anteriormente, é essa fotografia que altera o mundo percebido. Por um lado, reafirma a posição de que aquilo a que denominamos realidade não é outra coisa se não a percepção – o mais próximo que poderemos chegar daquilo que convencionamos chamar de mundo real – de uma realidade, e que o uso da expressão realidade fotográfica diz respeito não à veracidade da imagem, mas à complexidade da realidade interna da fotografia. Por outro, cria um mundo de circularidade imagética, da fotografia da realidade fotográfica, do verbo que se faz imagem para que possa ser apontado. A compulsão fotográfica já não expressa, procura no valor da imagem sua essência, seu motivo de existir, apontando obsessivamente para outras imagens – fotográficas ou materializadas, na busca de algo que lhe permita o deleite momentâneo de ser expressão. Testemunhamos, ad nauseum, as fotografias idênticas e desnecessárias dos feeds.

Dorrway to the Sea, 1982. Foto de Joel Meyerowitz.

Dorrway to the Sea, 1982. Foto de Joel Meyerowitz.

A percepção que se ocupa da imagem é vazia. Barthes já havia ressaltado na transparência da fotografia seu valor como um acesso, uma janela ao que expressa na imagem por ela apresentada. Remova-se da fotografia sua expressão e temos um mundo em eterna busca pela próxima fotografia, aquela que irá lhe proporcionar a vivência de uma realidade que carrega. O Baco da fotografia definha olhando para – mais outra – imagem de um prato de comida.

Gustavo Pozza é um dos professores do curso online Fotografia e Filosofia.

Mais informações: Curso Fotografia e Filosofia


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Gustavo Luiz Pozza é graduado em fotografia, especialista em imagem publicitária, mestre em filosofia e doutorando em filosofia. Autor dos livros "Contemplando um Soldado Morto" e "Anima".

Professor de cursos de graduação e pós graduação desde 2006, pesquisador e fotógrafo.

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