Eu, Eles, Nós

por Erika Tambke

O ser humano é um ser social. Ainda assim, não faltam divisões criadas para se referir a grupos, classes, gosto musical e até mesmo nações. Não importa a escala, parece que sempre há uma forma de nos dividirmos mais, de nos afastarmos. Como se fossemos essencialmente diferentes porque um prefere Roberto Carlos e outro Nirvana. Não podemos gostar dos dois? Temos necessariamente que escolher?

Roberto Carlos, mas poderia ser a foto do Kurt Cobain

Roberto Carlos, mas poderia ser a foto do Kurt Cobain

Stuart Hall, jamaicano e britânico, afirmou que somos múltiplos em nossas identidades. Podemos ser brasileiros ou japoneses, louros ou negros, cisgênero ou transgênero, viver em Ipanema ou na Baixada. Acumulamos identidades, pontos de vista e, portanto, lutas sociais. Não podemos nos explicar por apenas uma característica. Atualmente, poderíamos dizer que podemos ser todas essas coisas juntas: binacionais, negro e louro, bissexual…há muitas formas de duplos, múltiplos e exponenciais. A rigidez parece não combinar com a vida que levamos. O intelectual marxista não quis dizer que acumularmos identidades nos coloca como isentos no universo, que podemos ser qualquer coisa. Não era exatamente uma tradução de um pensamento hippie vislumbrando a era de Aquário. Pensar identidades para Hall é trazer o poder ao debate, dentro de um contexto de classes sociais. Quem somos nos diz sobre o poder que temos ou disputamos.

foto Érika Tambke. Todas as identidades, crenças e nacionalidades fazem parte de um mesmo todo.

foto Érika Tambke. Todas as identidades, crenças e nacionalidades fazem parte de um mesmo todo.

Em conversas informais, me surpreende a frequência em que se evocam oposições entre os pronomes retos: o eu x ele/a, o nós em contraposição ao “eles”. Desses rachas lemos e julgamos como uma consequência natural e factual: o “morro” versus “asfalto”. Se de um lado se escuta “gente do bem”, isso quer dizer que teremos “gente do mal”? Criamos trincheiras pela fala, reproduzimos em nossa arte, nossas expressões e, ainda, na produção do conhecimento. As instituições cumprem o seu dever de deixar tudo no seu lugar. Linguagem é poder. Ela nos permite definir ou defender leis, questionar autoridades, prescrever remédios e definir como vamos nos reportar a alguém, com quem ou de quem falamos. Talvez esteja na hora de usarmos este poder para nos transformarmos: pela linguagem dar o pontapé de uma eventual reversão de uma das faces da segregação social, que também se representa em nossos diálogos.

Frequentemente, vemos que a favela é reportada como “eles”. Essa percepção midiática, que se trata de “Outros”, acabou tendo uma resposta: “nós por nós”, expressão que se multiplicou entre os movimentos populares. Porque para o morador de favela, se dependesse “deles”, os “do asfalto”, a favela seguiria exposta sob os ataques e o descaso do Estado, seja nas operações policiais ou como se proteger da pandemia. Eles contam com si próprios, não com os “Outros” para eles, os de fora da favela. Se entendemos que todos os cidadãos devem ter direitos iguais, não somos todos “nós”? Porque a imprensa hegemônica trata a favela como “os outros”, “aqueles”, “eles”? É necessário desafiar o campo simbólico ativamente, pois as disputas se fazem presentes nas palavras, imagens, conceitos…um amplo campo de muitas ramificações.

Neste caminho, não poderemos escapar de confrontos: amigos e bons colegas também discordam. Contudo, na construção de novos discursos, evitemos as antíteses entre bons e maus, homens e animais, civilizados e não civilizados. Somos feitos da mesma matéria. É depois de nascer que as regras arbitrárias e tiranas nos fazem desiguais. Alguns termos precisam ser assumidos como vencidos, não condizem com o momento plural que desejamos.

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Os “Outros” também aparecem de maneira marcante quando se tenta definir a cultura ou arte, muitas vezes seguida pela afirmação de quem estaria apto a produzi-la. Quem define estes escolhidos para o Olímpio dos artistas? Como são definidas as regras estéticas do clube seleto? Seguimos dentro de um processo civilizatório, na arte e suas expressões? Neste esforço de repensar a linguagem, não precisamos ser coesos nem homogêneos. Correríamos o risco de sermos ou pedantes ou monótonos. Até mesmo hipócritas. Mas com sinceridade, boa vontade e menos antropocentrismo, podemos sim construir novas formas de “nós”. Conexões bem mais frutíferas para aqueles que desejam uma cidade melhor e mais justa. Refletir a linguagem, a expressão, o fazer imagem. O dever de casa, a gente pode começar em casa. Na alma, na palavra.


Erika Tambke

Erika Tambke

professora: Erika Tambke

Fotógrafa independente, Doutoranda em Mídia e Mediações Socioculturais na ECO/UFRJ, Mestre em Cultura Visual pela Birkbeck College, University of London e Bacharel em Geografia (UFRJ). Sua pesquisa é sobre a fotografia popular no Rio de Janeiro,c omo uma forma de diversificar as narrativas da cidade, contraponto às imagens de cartão-postal. Erika participa do Coletivo Favela em Foco. Em 2019, coordenou a Semana de Ocupação Visual/FotoRio, na UERJ.

Erika já trabalhou como fotógrafa em Londres e depois foi coordenadora da Agência do Imagens do Povo, no Rio. Hoje atua como fotógrafa e professora de fotografia em cursos livres, no Rio e outras cidades. Recentemente vem participando como moderadora de mesas-redondas sobre fotografia com a Magnum no Brasil, World Press Photo, entre outros. Apresentou o seu trabalho em três exposições solo: Corações em Festa (Rio de Janeiro, 2019); Linhas, traços e outras buscas: da Fazenda Nacional à Lagoa (Rio de Janeiro, 2016);  Joy'n'Carnival (Londres, 2008) além de mostras e exposições coletivas: Monomito (Recife, 2016), Cyanotype Day (New Orleans, 2017), Fotografia + Cidadania (FotoRio Resiste, Rio de Janeiro, 2018) A Porra da Arte (Rio de Janeiro, 2019).



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