Cruzando Fronteiras – Claudia Andujar

Por Joana Mazza

Claudia Andujar - Reprodução - Cortesia Galeria Vermelho | Sem título - da série Sonhos Yanomami, 1974

“On ne voit bien qu'avec le cœur. L'essentiel est invisible pour les yeux.”

Antoine de Saint-Exupéry

A relação entre o tempo e a realidade formam o eixo central da fotografia documental do século XX. Essa escola, com origem na Europa, traz em si uma forma de pensamento que absorve e representa a forma de pensamento do mundo ocidental, onde há pouco espaço para a subjetividade e ao mesmo tempo a hipervalorizarão da racionalidade. Os povos originários das Américas herdaram uma forma de compreensão do mundo e da realidade totalmente diferente, com uma cosmovisão que se desprende do homem como eixo central e agrega distintos campos de percepções que refletem esta outra forma de pensamento.

Talvez não tenha sido de forma consciente quando Claudia Andujar identificou pela primeira vez que a fotografia documental não dava conta de representar o povo Yanomami sem enquadrá-los na forma de compreensão da realidade ocidental. Assim, ela foi aos poucos se desprendendo dessa forma de representação, trabalhando com materiais e linguagens que poderiam trazer à imagem algo desta subjetividade invisível ao ocidental, mas que era parte da cultura deste povo. Ao princípio ousou com os filmes infra-vermelho e colorido, posteriormente inaugurou uma nova etapa da sua produção com a imersão em seu próprio acervo e reconstrução das imagens buscando acrescentar a percepção do invisível que ainda não havia sido devidamente representado em seu trabalho. Dentro da própria cultura ocidental, é possível resgatar a expressão “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos” do livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry para pontuar a necessidade de uma imersão interior para apresentar uma representação visual mais profunda. Em “Sonhos Yanomami” Andujar rompeu com a fotografia documental, ao mesmo tempo complementando sua longa série original com uma imersão nesta outra forma de compreensão do mundo praticado pelos Yanomami. Esta nova fase é sem dúvida baseada na experimentação e na total liberdade de expressão para a produção de sua obra visual.

Claudia Andujar - Reprodução - Cortesia Galeria Vermelho | Guerreiro de Toototobi - da série Sonhos Yanomami, 1976

Andujar começou a fotografar em busca de estabelecer uma relação com o povo brasileiro, país para onde havia imigrado após perder parte de sua família na Segunda Guerra Mundial. Antes de aqui chegar, havia vivido em Nova Iorque onde iniciou de forma autodidata sua carreira na pintura. A fotografia foi então o instrumento utilizado para trabalhar a relação com o outro e com ela mesma, consequência do processo de busca pela identidade perdida e fragmentada da história desta autora. Quando a abstração de suas pinturas perdeu espaço para a fotografia documental a autora passou a trabalhar para revistas como Life, Look e Realidade. Foi através da Realidade que começou a fotografar os Yanomami, em 1971. Este encontro foi muito além de uma relação de trabalho e se tornou um projeto de vida, consequentemente encerrando sua trajetória no fotojornalismo. Ainda no princípio dos anos 70 conseguiu permanecer na aldeia por conta de uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim e outra posterior da Fapesp, entre idas e vindas resultou cerca de 30 anos de fotografia neste território. O eixo condutor de sua obra desde o princípio era apresentá-los como eles se viam, tratando com o devido cuidado a dura realidade que assolou este território a partir da entrada de empresas de construção e mineração em um plano desastroso do governo Médici.

Através dos Yanomami ela reconheceu sua própria vulnerabilidade, conheceu uma nova visão de mundo que procurou compreender, aprendeu a lutar e lutou junto com eles pela demarcação do território. A relação estabelecida é tão profunda que eles a identificam pela palavra correspondente a nossa compreensão do termo “mãe” e não como "mulher branca", palavra que designa estrangeiros e vem da mesma origem da palavra inimigo. Vale ressaltar que para os Yanomamis não existe identificação pessoal como em nossa cultura ocidental civilizada.

Claudia Andujar- Reprodução - Cortesia Galeria Vermelho | Êxtase - da série Sonhos Yanomami, 1974

Em 30 anos fotografando os Yanomamis em seu território, Claudia conseguiu construir inúmeras formas de representação, bem como uma extensa coleção fotográfica. Grande parte dessa coleção permanece inédita, mesmo após inúmeras revisitações e publicações. Esse período é complementado pelo período de produção da série Sonhos Yanomami e o recente retorno ao território. Em 2021 completarão 50 anos do início deste percurso.

A busca pela representação do invisível iniciou efetivamente junto com o início da representação do povo Yanomami, como exemplo as imagens onde utiliza o filme infra-vermelho, e a consequente alteração da percepção da luz nestes casos como apresenta Rogério Duarte em artigo na revista Studium de 2002: "Os espíritos auxiliares dos xamãs Yanomami, chamados xapiripë ou hekurapë, aparecem primeiramente a quem os invoca na forma de luzes cintilantes. Aos poucos revelam seus corpos minúsculos e brilhantes, enfeitados com plumas brancas na cabeça e braçadeiras de penas de arara e papagaio. Nesse universo, a luz assume uma densidade simbólica que somada à especificidade da linguagem fotográfica - luz e sombra - permite a expressão de um pensamento interior. Dessa forma, Claudia não fotografa "a luz", mas a cultura, ou ainda, os espíritos Yanomami. Em seu trabalho, é principalmente o diálogo entre a luz "material" e a luz "simbólica" que produz o resultado fotográfico."

Em “Sonhos Yanomami” de alguma forma Andujar rompe de forma ainda mais intensa com o material e o real e mergulha em uma percepção mística, ainda inominável para o ocidente. Talvez por isso mesmo, a escolha do título, o sonho é o âmbito possível do incompreensível, do surreal, sendo então o único âmbito em que talvez esse universo permeie a nossa sociedade.

Claudia Andujar -Reprodução - Cortesia Galeria Vermelho | Desabamento do céu / O fim do mundo - da série Sonhos Yanomami, 1976

Bibliografia:

Campos, Rogério; Hupsel, Rafael; Isensee, Marcio; Lopes, Marcos; Wen, Leonardo

“Claudia Andujar - Yanomami: a etnopoética da imagem”

http://povosindigenas.com/claudia-andujar/

Crary, Jonathan. “Técnicas do Observador – visão e modernidade no sec XIX”. Ed Contraponto.

DUARTE, Rogério. “Olhares do Infinito – notas sobre a obra de Claudia Andujar”. Revista Studium nº 12, Instituto de Arte da UNICAMP

http://www.studium.iar.unicamp.br/12/5.html

Dicionário Yanomami

https://www.dicionariotupiguarani.com.br/yanomami/


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Joana Mazza é curadora, produtora cultural, artista, especialista em fotografia latino-americana. Atualmente está cursando o mestrado em arte, pensamento e cultura latino americano no instituto de estudos avançados IDEA da Universidade de Santiago do Chile. É formada em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ e pós graduada em fotografia pela Universidade Candido Mendes. Entre suas principais atividades destacam-se a coordenação de exposições do FotoRio (edições de 2003 a 2009), a coordenação do Programa Imagens do Povo (2010 a 1003) e da Escola de Fotógrafos Populares de 2012 (Observatório de Favelas), e como curadora assistente no MAC de Niterói (2013 a 2015).

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