Cruzando Fronteiras – Fernanda Magalhães
Por Joana Mazza
“Perceba-se, portanto, que o privado sempre foi público e o quanto as ações políticas e as produções de saberes interferiam – e interferem – nas decisões da intimidade, invadindo e provocando invasões em espaços mais íntimos até do que as casas: os corpos. [...]”
“A Natureza da Vida”.
Performance durante o FotoRio Resiste Foto de Christina Bocayuva
Fernanda entra no espaço, cumprimenta os que estão mais próximo do seu caminho, posa para fotos e sorri. De forma espontânea ela transforma sua presença em sua performance. E sorri. Afinal, não é esse o papel da mulher gorda na sociedade? O da fofa, o da amiga, o da engraçada?
Ela sorri enquanto posa para fotos. Convida aos presentes a fotografarem e assim fazerem parte da ação. Sorri enquanto movimenta com os braços inspirada nos clássicos estúdios de glamour fotográfico. Posa para todos, olha e sorri para cada um.
Há um banco no espaço e este passa a ser o seu palco, mas o banco é pequeno e Fernanda é grande. Ela tenta adaptar-se a ele. Se contorciona, sofre e sorri. Ela está determinada em caber no banco, mas não é uma tarefa fácil. Ela perde o equilíbrio, cai, volta a tentar de novo. Seu rosto fica vermelho com o esforço, mas sorri. Olha para os fotógrafos ao redor. De fotógrafos de estúdio, o público se transformou em testemunhas do seu sofrimento.
Sua determinação infortunada em entrar no padrão do banquinho se transforma em resistência a ele e rompe com o incômodo. Primeiro é a vez da roupa depois do banquinho. Convida aos que estão presentes a romperem também. “Alguém quer?” pergunta ela com a marreta entre as mãos e com os braços estendidos. E o banquinho foi se transformando em pedaços, perdendo sua forma para adaptar-se aos corpos presentes.
“A Natureza da Via”. Performance durante o FotoRio Resiste.
Foto de Joana Mazza
Assim percebi “A Natureza da Vida”, a performance apresentada por Fernanda Magalhães na recente edição FotoRio Resiste, no Retrato Espaço Cultural. Magalhães deveria dispensar apresentação, entretanto como sua obra já aponta, a invisibilidade da mulher gorda é uma realidade, de forma que vale fazer um breve resumo: Fernanda é artista, performer, fotógrafa e professora da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, por sinal, cidade em que nasceu e vive até hoje. Ela recebeu o Prêmio Marc Ferrez pelo ensaio “A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia”, em 2010 lançou o livro “Corpo Re-construção Ação Ritual Performance”. Participou de inúmeras exposições individuais e coletivas, entre elas destacam-se em 2012 na Maison Euroeenne de la photographie em Paris e em um giro internacional entre 2003 e 2005, como parte da exposição “Mapas Abiertos”. A performance "A Natureza da Vida" foi desenvolvida e transformada ao longo do tempo. A primeira edição ocorreu em 2000 no Central Park em NY, passou também pelo Jardin du Luxembourg em Paris, em Krasnodar na Rússia, no Parque del Prado em Montevidéu, entre muitas outras edições.
Todo o corpo de trabalho de Magalhães lida com questões relacionadas ao corpo da mulher gorda, resultado natural de sua própria experiência. Socialmente, o corpo de uma mulher gorda é um corpo negado, excluído de uma normalidade que se ampara em uma compreensão que existe opção em ser gordo ou não. A crença que existe opção em ser gordo vem de uma sequência de negações, desde não fazer dieta, não fazer exercício, não fazer cirurgia bariátrica, não fazer lipoaspiração além de uma lista interminável de procedimentos cirúrgicos e medicinais possíveis.
O corpo gordo não é apenas o corpo esteticamente fora do padrão, mas é considerado também o corpo sem saúde. A questão da saúde se acentua quando deparamos com a categoria obesidade mórbida, ou seja, uma espécie de anomalia que não se refere apenas à questão física, mas também ao aspecto psíquico-social. Dentro do termo mórbido subentende-se apatia, tristeza, moléstia, fraqueza, entre outros sinônimos lúgubres.
Em uma entrevista para a TV é Paraná, Magalhães aponta para o problema de que o corpo ideal não existe, o conceito de beleza hoje se refere a um padrão artificial e vem associada a um pensamento de mercado e a venda de produtos e serviços que supostamente fariam as pessoas alcançarem a meta. O corpo da mulher gorda é um corpo que deve ser modificado, portanto é um corpo em transição. Sem dúvida o corpo da mulher gorda é o corpo do sofrimento, da mutilação, da tortura. Magalhães decidiu não sucumbir a este processo e optou por passar a colocar este tema como forma de reflexão. Ela então se pergunta: A mulher gorda não é desejada? A mulher gorda tem o direito de desejar e desejar ser desejada? O corpo gordo afinal não é natural?
Segundo o curador Paulo Hekenroff Magalhães rejeita a rejeição. Se por um lado, a ação em resistir e assumir sua vontade de não submeter-se as rígidas regras sociais, coloca o obeso em um nível de invisibilidade social, comparável ao conceito de "não ser" descrito por Frantz Fanon sobre o homem negro, por outro lado Magalhães trabalha diretamente sobre sua invisibilidade e se expõe de corpo nu e peito aberto para colocar sua realidade em pauta. Ao se apresentar como uma modelo diante do público-fotógrafo, todos ao seu redor são convidados a olhar para ela e perceber sua existência e presença, além de obviamente perceber o problema ético relativo ao corpo obeso. O banco de “A Natureza da Vida” representa as regras da sociedade, os padrões que não apenas impõem o comportamento, mas também o corpo. Ao romper com o banco é uma alusão à liberação das normais sociais.
“A Natureza da Vida.”Performance durante do FotoRio Resiste.
Foto de Joana Mazza
“A Natureza da Vida". Performance durante o FotoRio. Foto de Kitty Paranaguá.
“A Natureza da Vida". Performance durante o FotoRio. Foto de Kitty Paranaguá.
Saiba mais em http://www.fernandamagalhaes.com.br/
* Barros, Roberta. “elogio ao toque: ou como falar de arte feminista à brasileira.” 2016 (pág. 106)
Joana Mazza é curadora, produtora cultural, artista, especialista em fotografia latino-americana. Atualmente está cursando o mestrado em arte, pensamento e cultura latino americano no instituto de estudos avançados IDEA da Universidade de Santiago do Chile. É formada em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ e pós graduada em fotografia pela Universidade Candido Mendes. Entre suas principais atividades destacam-se a coordenação de exposições do FotoRio (edições de 2003 a 2009), a coordenação do Programa Imagens do Povo (2010 a 1003) e da Escola de Fotógrafos Populares de 2012 (Observatório de Favelas), e como curadora assistente no MAC de Niterói (2013 a 2015).