Cruzando Fronteiras - Por que é necessário pensar em uma fotografia pós-humanista.

Por Joana Mazza

Para iniciar esta reflexão é preciso fazer uma breve análise do que representa o termo humanismo na cultura ocidental, incluindo o campo da arte e da fotografia. Apesar de terem sido desenvolvidos ao longo do tempo diferentes “humanismos”, todos compartem a origem e princípios estabelecidos durante o período do Renascimento nos séculos XV e XVI. Neste contexto de origem, o humanismo se desenvolveu em meio a expansão comercial da Europa em direção à Ásia, e, sobretudo, vinculado ao descobrimento -e apropriação- do continente em que vivemos, a América. De acordo com a filósofa italiana Francesca Ferrando, para refletir sobre o humanismo é necessário retroceder até a cultura no qual se inspira, a da Grécia Antiga. A palavra “humano” vem do antigo termo grego Anthropos (ἄνθρωπος), contendo intrinsecamente uma noção que é bastante excludente em sua compreensão, sendo definido a partir do que não é, como um animal, um bárbaro, um deus ou deusa. Vale a pena recordar que os bárbaros eram uma referência aos persas, um grande império e o maior rival da Grécia neste período. Finalmente, para pertencer ao seleto grupo “Antropos”, o homem grego deveria ter passado pela formação da Paideia, o complexo sistema educacional restrito a um seleto grupo de meninos. As mulheres, incluindo as atenienses, não estavam contempladas pelo termo.

Se a origem do termo humano está relacionada com uma conformação que contempla diferentes níveis de seres humanos, ela carrega de forma implícita a ideia de sub-humanos.  A recuperação deste pensamento durante o Renascimento estruturou o humanismo e foi disseminado globalmente através do colonialismo. Ferrando apresenta como exemplo o confronto que se deu no início do processo de colonização das Américas entre Bartolomeo de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, cujo epicentro foi se os índios nativos eram adequados à evangelização, alcançando assim a liberdade, ou se eram néscios ou bárbaros e, portanto, deveriam ser escravizados como os africanos eram neste período. O impacto direto da sedimentação desta linha de pensamento segue latente na América Latina até os dias de hoje.

Os campos da arte, academia, imprensa, entre outros foram consolidados a partir desta estrutura excludente. Na América Latina, incluindo o Brasil, o humanismo renascentista chegou junto com os Europeus no século XVI. Entretanto é possível reconhecer os pontos de fissuras que se desenvolveram em um passado recente, especialmente conectados aos movimentos feministas, racial(s), lgbti(s), indígenas(s), entre outros, que possibilitaram questionar a conformação dominadora e hierárquica que ordena todos os níveis da cultura ocidental.

Ao examinar os pontos de ruptura da história da arte com a estrutura humanista do Renascimento, observo que um momento-chave ocorre quando se dá a separação da lógica racionalista do modelo de visão, por um lado, e os movimentos de vanguarda que iniciaram o modernismo na Europa, por outro. Segundo Jonathan Crary, esta estrutura de arte renascentista prevaleceu durante séculos, sendo inicialmente contestada pelo modernismo, no entanto, as discussões deste período não abraçaram um propósito crítico.

“Este segundo modelo diz respeito à invenção e divulgação da fotografia e outras formas de "realismo" relacionadas no século XIX. Em esmagadora maioria, estes desenvolvimentos têm sido apresentados como parte da história contínua de um modelo de visão com base renascentista, no qual a fotografia e, em última análise, o cinema são apenas exemplos mais recentes de uma demonstração ininterrupta do espaço e percepção de perspectiva. Assim, no século XIX, frequentemente permanece um modelo de visão confuso que se divide em dois níveis: a um nível, haveria um número relativamente pequeno de artistas avançados que gerariam um tipo de visão e significado radicalmente novos, enquanto, a um nível mais cotidiano, a visão permaneceria enraizada nas mesmas limitações "realistas" gerais que a haviam organizado desde o século XV. O espaço clássico é revogado, por um lado, ao que parece, enquanto persiste, por outro.” (1) (Crary, 2008, p.19)

Quando a fotografia surgiu no século XIX, ela não apenas herdou a perspectiva renascentista, mas também a estrutura cultural baseada no humanismo do Renascimento. Entretanto, ela permitiu o acesso a imagem por grupos reconhecíveis dentro dos espectros de sub-humanos –entendendo aqui que existem inúmeros matizes de conformação, como características econômicas, sociais, raciais, culturais, físicas, etc.- o que possibilitou posicioná-la em uma estrutura hibrida, que rompe com o antropocentrismo da produção por um lado, mas persiste por outro através das estruturas culturais e estéticas que sustentam o campo.

Me pergunto, por exemplo, se seria possível Martín Chambi alcançar o sucesso no Peru na primeira metade do século XX se não tivesse lançado mão da estética barroca. Não quero dizer com isso que sua obra não seja relevante, muito pelo contrário, ele desenvolveu um magnifico retrato da cultura andina e deixou um legado do sentido social da fotografia. Entretanto, para este início do século XXI, até onde é possível libertar-se desta estrutura?

O cenário contemporâneo é composto por inúmeros novos matizes, como por exemplo, a disseminação e acesso gradual ao tecnocosmos, considerando neste pacote o acesso à tecnologia (câmera digital ou celulares com câmera) e a possibilidade de disseminação e acesso a conteúdo através da internet (2).  É notório e crescente o número de novos interlocutores e produtores originários passiveis de serem compreendidos dentro do marco de sub-humanos. Portanto estamos diante de um novo horizonte, onde a produção do conhecimento e da imagem, por exemplo, não é mais necessariamente centrado em um seleto grupo. Portanto, considero cada vez mais relevante recorrer ao movimento feminista negro estadunidense que propõe a necessidade de posicionar o lugar de fala na elaboração de uma questão, seja no campo do conhecimento, da arte, ou na fotografia. É um primeiro passo a identificar um processo multicultural, com respeito as diferenças, mas também que possibilite a identificação quando se fala em nome de um outro. Um dos problemas estruturais do antropocentrismo é a perseverante concentração do posicionamento do homem branco ocidental como gerador de conhecimento e visão própria sobre o outro, o que acaba por estabelecer estigmas e simplificações que sufocam as diferentes culturas existentes neste vasto continente.

Moara Brasil. Tuire Kayapo (Série Mirasawá com releitura de foto de Dida Sampaio), 2019.

Moara Brasil. Tuire Kayapo (Série Mirasawá com releitura de foto de Dida Sampaio), 2019.

Portanto, proponho uma fotografia pós-humanista como aquela em que o autor parte por estabelecer quem é, quais são os seus princípios, quais são os seus objetivos, se o que fotografa é sobre um outro –e, portanto, é uma espécie de visão estrangeira-, sobre si mesmo, ou quais são os pontos que considera convergentes entre sua própria elaboração cultural em relação a imagem produzida.

Entretanto preciso reconhecer que o termo pós-humanista é utilizado por distintas linhas de pensamento. Apesar de ter me baseado nas proposições de Francesca Ferrando e sua filosofia pós-humanista, tenho plena consciência que o termo no âmbito europeu e estadunidense está conectado a projeções para a humanidade relacionadas ao desenvolvimento científico e tecnológico e não ao rompimento com as estruturas humanistas que sustentam a hegemonia destes povos. Mas sendo brasileira, aproveito as origens antropófagas e faço a digestão do termo no modo que acredito ser mais produtivo.

Para encerrar, gostaria de propor os fotógrafos populares como exemplo do que poderia ser uma fotografia pós-humanista carioca (ainda que seja uma sugestão que faço neste momento e nem os fotógrafos, tampouco o Programa Imagens do Povo se identifiquem desta forma), pois eles compartem as características de descentralização da produção, apontam seus valores e princípios, estabelecem o lugar de fala e exploram a possibilidade de crescimento a partir das viabilidades tecnológicas do século XXI, reunindo assim características que delimitei como chaves nesta questão.

Luiz Baltar. Série Fluxos, 2015.

Luiz Baltar. Série Fluxos, 2015.

Referencias:

https://luizbaltar.com.br/.

http://www.moarabrasil.com/.

Crary, Jonathan. Las técnicas del observador: Visión y modernidad en el siglo XIX. Murcia: Cendeac, 2008.

Ferrando, Francesca. Philosophical Posthumanism. New York: Bloomsbury Academic, 2019.


[1] Tradução própria.

[2] Devo ressaltar o sentido gradual, em que a tecnologia de ponta só é alcançada por uma parcela restrita da população, enquanto as tecnologias obsoletas vão sendo absorvidas pelas demais camadas. Além disso, as diferenças sociais na América Latina são tão profundas que ainda há camadas que não tem qualquer forma de acesso ao tecnocosmos, como foi evidenciado no problema da educação pública neste período da pandemia de COVID-19.

Ferrando, Francesca. Philosophical Posthumanism. New York: Bloomsbury Academic, 2019.


Joana Mazza

Joana Mazza

Joana Mazza é curadora, produtora cultural, artista, especialista em fotografia latino-americana. Atualmente está cursando o mestrado em arte, pensamento e cultura latino americano no instituto de estudos avançados IDEA da Universidade de Santiago do Chile. É formada em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ e pós graduada em fotografia pela Universidade Candido Mendes. Entre suas principais atividades destacam-se a coordenação de exposições do FotoRio (edições de 2003 a 2009), a coordenação do Programa Imagens do Povo (2010 a 1003) e da Escola de Fotógrafos Populares de 2012 (Observatório de Favelas), e como curadora assistente no MAC de Niterói (2013 a 2015).

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