Liebe Mutti, querida mamãe, preciso de uma Leica...

Por Andreas Valentin

Entre 1933 e 1937, meu pai, Gerhard Valentin, trabalhava em Hamburg de onde, todas as semanas, escrevia cartas para seus pais em Hannover. Após concluir o ensino médio em 1933, não pode levar adiante seu projeto de estudar medicina, pois as novas leis do regime nazista proibiam descendentes de judeus de cursar a universidade. Numa carta de março de 1936, expressou seu desejo de possuir uma Leica e pediu a seus pais que lhe ajudassem a comprá-la, pois produzia “resultados muito melhores” do que a câmera que tinha.

Meu pai não era fotógrafo profissional. Naquela época era estagiário numa empresa de despachos marítimos. Gostava de viajar - em sua moto BMW levando a namorada Gisela na garupa, de trem ou de carro pelas novas Autobahn (estradas) alemãs. Até emigrar para o Rio de Janeiro em junho de 1937, já havia conhecido quase toda a Alemanha. Centenas de fotografias realizadas por ele com sua nova câmera e organizadas em álbuns registram suas memórias dessas viagens. Os primeiros anos no Brasil foram também documentados com sua Leica.

A motocicleta BMW (foto Gerhard Valentin, 1936).

A motocicleta BMW (foto Gerhard Valentin, 1936).

Na estrada (foto Gerhard Valentin, 1936).

Na estrada (foto Gerhard Valentin, 1936).

Álbum de fotografias de Gerhard Valentin de viagens pela Alemanha, 1936.

Álbum de fotografias de Gerhard Valentin de viagens pela Alemanha, 1936.

Como Gerhard, fotógrafos amadores e profissionais na Alemanha e em todo o mundo utilizaram essa nova tecnologia. Em 1925 Oskar Barnack lançou no mercado a primeira Leica. Utilizava filme 35mm, o mesmo do cinema. Era uma câmera leve, de fácil manuseio e com excelentes mecânica e ótica. O aparelho mudou os rumos da fotografia e em especial o do fotojornalismo. Implantou a prática do instante, permitindo ao fotógrafo decidir questões técnicas e estéticas em frações de segundo. Possibilitou novos olhares sobre a realidade e a vida cotidiana.

Leica Logo.jpg
Um dos primeiros modelos de Leica

Um dos primeiros modelos de Leica

Meu pai não pode comprar a Leica somente com seu salário de estagiário. Recorreu aos pais, justificando na carta porque o equipamento seria tão importante. Era não apenas um objeto de desejo, mas, naquele momento, um item necessário, já antevendo e preparando a emigração para o Brasil. As fotografias realizadas durante a travessia de navio e, principalmente, após sua chegada, foram enviadas para os pais na Alemanha. Um ano e meio depois eles também foram forçados a deixar sua terra natal e vieram para o Rio de Janeiro.

Chegada no Rio de Janeiro (foto Gerhard Valentin, junho de 1937).

Chegada no Rio de Janeiro (foto Gerhard Valentin, junho de 1937).

Essas imagens me acompanham até hoje e me ajudam a entender não só o desejo de meu pai, mas minha própria história, também marcada por trajetos, deslocamentos, memórias e... fotografias.

Gerhard Valentin com sua Leica, 1942.

Gerhard Valentin com sua Leica, 1942.

(em tempo: não conheci a Leica de meu pai, que acabou sendo trocada por outras câmeras; lembro-me, no entanto, da Rolleiflex 4 x 4 cm, da Zeiss Ikon, da Nikkormat e da Leica CL).

 


Andreas+Valentin.jpg

Andreas Valentin é fotógrafo, pesquisador e curador. Doutor em História Social (UFRJ), com uma pesquisa sobre a fotografia amazônica do alemão George Huebner (1862-1935). Mestre em Ciência da Arte (UFF) e graduado em História da Arte e Cinema (Swarthmore College, Pennsylvania, EUA). É professor-adjunto de Fotografia e História da Arte (UERJ). Sua exposição “Berlin<>Rio: Spuren und Erinnerungen”, inaugurou no Haus am Kleistpark, Berlin, em 3 de maio e ficará em cartaz até 12 de agosto de 2018.

Leia outras colunas de Andreas Valentin

Ateliê OrienteComentário