Como Cartier-Bresson chegou na Maré
Por Luiz Baltar
Ocupar qualquer espaço é sempre um desafio. A minha entrada nesse território, Blog do Ateliê Oriente, foi através de um convite para escrever regularmente sobre o que quisesse. O desafio é preencher esse espaço com alguma organização e coerência, dividindo com vocês referências caóticas, fragmentadas, quase sempre contraditórias, que vão do fotojornalismo até a fotografia documental expandida. Aqui será um espaço de dividir poucas certezas e muitos questionamentos em uma busca compartilhada.
Mas não dá para iniciar essa nossa relação sem me apresentar, dizer de onde venho e qual o meu lugar de fala, essencial para entender as associações que faço no meu trabalho. Poderia vir lá de trás falando da minha infância em Bento Ribeiro, subúrbio da Central do Brasil de onde saía para conhecer a cidade através das janelas dos ônibus e trens, mas vou começar pela pedra fundamental para algumas gerações de fotógrafos: a Escola de Fotógrafos Populares (EFP) na Maré.
João Roberto Ripper fotografava na Maré e pediram que ele desse uma oficina de fotografia. O primeiro curso teve uma curta duração e foi dado junto com Adriana Medeiros. Ripper continuou indo eventualmente fotografar a Maré e as mudanças que aconteciam na favela. Percebia que a grande imprensa só reproduzia estereótipos sobre violência e crimes e desconhecia a beleza que existiam alí naqueles espaços. Em 2004 Ripper idealiza a Escola de Fotógrafos Populares e junto com amigos entusiasmados, entre eles Ricardo Funari que divide a coordenação com ele, criam o projeto de um centro de excelência na produção de imagens instalado dentro de uma favela. Em 2006 o professor Dante Gastaldoni estrutura a proposta pedagógica ampliando a carga horária para 540 horas, distribuídos em 10 meses de curso. A Escola se consolida assim na formação de fotógrafos com o mais alto nível técnico e sensibilidade social, seguindo a tradição dos fotógrafos humanistas, capacitando seus alunos para documentar a história de suas próprias comunidades e atuar profissionalmente no mercado de trabalho como fotojornalistas, na cobertura de eventos ou no mercado de arte.
Foi assim que o francês Henri Cartier-Bresson chegou na Maré, trazido por Ripper e apresentado nas aulas de Dante Gastaldoni. O inusitado encontro do maior ícone da fotografia mundial com jovens fotógrafos da periferia gerou um ensaio crítico sobre a qualidade e oferta de água nas favelas, a falta saneamento básico e também do desperdício. As releituras foram feitas, como uma homenagem ao criador da Agência Magnum, entre 2010 e 2011, por Francisco César, Léo Lima, Monara Barreto e Paulo Barros. A produção envolveu família e amigos e foram feitas onde moravam entre olhares curiosos dos vizinhos. Na falta de vinho a inspiração veio mesmo da cerveja gelada. As crianças se envolveram em todas as etapas, orgulhosas de se verem como em um espelho, refletindo uma realidade tão próxima mas separadas por um oceano e com décadas de diferença. Era o embrião do cinema brincante do Cafuné na Laje, história que vai ficar para uma outra oportunidade.
PS. A produção esclareceu: Para a realização do ensaio, envolvendo também as brincadeiras com as crianças “desperdiçamos” 30 litros de água potável (15 garrafas pet de 2 litros cada).
Luiz Baltar trabalha como fotógrafo documentarista e desenvolve projetos autorais no campo da arte contemporânea. Acredita na fotografia como forma de expressão ativista e crítica, daí sua busca em estabelecer um diálogo entre fotografia e questões sociais, sobretudo no que diz respeito ao olhar sobre a cidade.