Berlin<>Rio: pistas, trajetos, memórias
Por Andreas Valentin
“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo”.
Walter Benjamin, “Escavando e Recordando”
Em 3 de maio de 2018, no Haus am Kleistpark, espaço cultural do bairro de Schöneberg em Berlin, foi inaugurada minha exposição “Berlin<>Rio: Spuren und Erinnerungen”. Venho trabalhando nesse projeto desde 2014, quando fui para Berlin realizar pesquisa de pós-doutorado no Instituto de História da Arte da Freie Universität. Antes de viajar, encontrei um pacotinho de 10 diapositivos (slides em cores no formato 35mm) onde, com a letra do meu pai, Gerhard Valentin, estava escrito “Berlin”. Levei o pacote fechado comigo e resolvi que iria abri-lo somente alguns meses depois, quando encontraria com meu irmão na Europa. Juntos, descobrimos que Gerhard viajou para Berlin com sua mãe, Martha Valentin. As fotos revelaram que passearam de ônibus turístico e a pé pela cidade, registraram o muro de Berlin e outros locais. Não sabíamos, no entanto, quando haviam sido realizadas e por que viajaram juntos para lá.
Abrindo o pacote de diapositivos de Gerhard Valentin (foto: Andreas Valentin, 2014)
Resolvi decifrá-las e percorrer aqueles mesmos caminhos, fotografando com filme preto e branco os lugares por onde meu pai e minha avó haviam passado. À medida em que fui revisitando aquelas imagens, resolvi aprofundar-me nesse trajeto, ampliando a busca por pistas, vestígios e camadas de memórias que, direta ou indiretamente, dialogassem com a história de minha família. No final da década de 1930, meus pais e avós foram forçados pelo nazismo a deixar a Alemanha e se exilar no Rio de Janeiro. Meu avô, Bruno Valentin - médico, pesquisador e professor universitário – havia reunido um acervo documental que se somou às fotografias, cartas e relatos de viagens de meu pai na Alemanha e no Brasil nas décadas de 1930-1950. Trata-se de um vasto e precioso arquivo, hoje mantido e organizado por mim e por meu irmão.
Trabalhando com essas diversas possibilidades, desenvolvi o projeto “Berlin<>Rio: Trajetos e Memórias”, contemplado em 2015 com o prêmio Marc Ferrez de Fotografia da FUNARTE. Em 2016/2017 foi exibido no Centro Cultural Justiça Federal/RJ, no Instituto Goethe e na Sociedade Fluminense de Fotografia, acompanhado de um catálogo com cerca de 150 imagens e textos em português e inglês.
A exposição em Berlin apresentou-se como um novo desafio. O espaço ali é generoso, com três amplas salas, grandes paredes e pé direito alto. Pude, portanto, ampliar o escopo da exposição, incluindo vasto material de nosso acervo, entre fotografias originais, reproduções, documentos e objetos.
Além dos “reenactements” (releituras) das imagens de meu pai em Berlin, trabalhei de forma semelhante a partir de suas fotografias no Rio de Janeiro e, principalmente, daquelas nas montanhas no Parque Nacional de Itatiaia. Ali, nos anos 1940, ele conheceu minha mãe, Judy Valentin, cuja família também havia sido forçada ao exílio no Brasil. Não à toa, Itatiaia ocupa uma parede de mais de dez metros de comprimento, a maior do espaço expositivo.
Ao entrar na galeria, vemos a reprodução de um quadro, pintado em 1887 por Anton von Werner e hoje abrigado no Museu Histórico da Alemanha em Berlin. Ali estão retratados meu tataravô Valentin Manheimer, suas cinco filhas e vários netos celebrando seu 70º aniversário. A partir do cromo original 5 x 7 polegadas, foi realizada uma nova digitalização e impressão em grande formato (300 x 420 cm), cerca de três vezes o tamanho da pintura. A imagem mostra todo o conteúdo do cromo, inclusive o fundo cinza e a escala de cores Kodak. Estrategicamente posicionada no início da exposição, referencia não só o conteúdo histórico como também as diversas formas de abordagem da fotografia contempladas na mostra.
Abertura da exposição (foto Arwed Messmer, 3/5/2018).
Em seu texto de apresentação, a diretora do Haus am Kleistpark, Barbara Esch Marowski, escreveu que “para além de um projeto de exposição de fotografias e de um livro, trata-se de um experimento”. Nesse experimento são abordadas a história de uma família, sua coesão e sua sobrevivência através de cinco gerações em diferentes sistemas políticos e culturais. É também um projeto sobre migração e remigração, chegada a uma terra estrangeira e retorno ao país originalmente deixado em angústia. Ela conclui que “a narrativa de Andreas Valentin possibilita o desenvolvimento de camadas mais profundas de experiência das imagens que, independentemente de suas qualidades estéticas, são legíveis também como um testemunho de práticas sociais e, em última instância, o próprio o uso da fotografia”.
Andreas Valentin é fotógrafo, pesquisador e curador. Doutor em História Social (UFRJ), com uma pesquisa sobre a fotografia amazônica do alemão George Huebner (1862-1935). Mestre em Ciência da Arte (UFF) e graduado em História da Arte e Cinema (Swarthmore College, Pennsylvania, EUA). É professor-adjunto de Fotografia e História da Arte (UERJ). Sua exposição “Berlin<>Rio: Spuren und Erinnerungen”, inaugurou no Haus am Kleistpark, Berlin, em 3 de maio e ficará em cartaz até 12 de agosto de 2018.