Irving Penn Centenário
Por Andreas Valentin
“I have always stood in awe of the camera. I recognize it for the instrument it is, part Stradivarius, part scalpel.” Irving Penn
“Eu sempre me admirei com a câmera. Eu a reconheço pelo instrumento que é, parte Stradivarius, parte bisturi”.
O cartaz na rua, em frente à casa modernista da galeria C/O Berlin já anuncia o que nos aguarda lá dentro. Picasso nos vislumbra com seu olhar, metade de seu rosto na sombra, a outra, iluminada, brilhante. Assim, cada uma das 240 imagens de Irving Penn (1917-2009), também nos deslumbram e, ao resumir sua trajetória de quase setenta anos, revelam toda a maestria de um dos mais importantes fotógrafos do século XX.
No início da exposição, organizada de forma cronológica, vemos seus primeiros retratos para a Vogue, realizados em 1943, quando já trabalhava como designer gráfico na revista. Dois anos depois, após ter servido na Segunda Guerra Mundial na Itália e na Índia, Penn retornou à Vogue e começou a desenvolver um trabalho inventivo e genial. Ali, ainda com poucos recursos, construiu um cenário fotográfico utilizando duas chapas de madeira em ângulo. Nesse espaço apertado e propositalmente delimitado, um ambiente ao mesmo tempo íntimo e constrangedor, produziu retratos icônicos. Vemos, por exemplo, o maestro e compositor Stravinsky com a mão na orelha, tentando “ouvir” sua própria imagem; o boxeador Joe Lewis nocauteado no canto; e Salvador Dali sentado, de pernas abertas e olhar desconfiado, buscando um sentido para aquele lugar estranho.
A partir dos anos 1950, Penn consagrou-se como o grande fotógrafo de moda de seu tempo. Não se ateve, no entanto, apenas aos retratos glamorosos das mais belas modelos da época. Ampliou os horizontes de sua fotografia para trabalhos com nus, que se destacam pela sensualidade, força e tamanho das mulheres, em sua maioria sem rosto, retratadas em posições esculturais.
Construiu exuberantes e coloridas naturezas mortas, que seguem a tradição clássica dessa forma de expressão artística e também a subvertem. Em “Natureza Morta com Melancia” de 1947, por exemplo, vemos ao centro a fruta; à frente, um pano sujo, restos de pão e de comida; e, ao fundo, uma jarra com cachos de uvas e um limão amarelo sobre o qual pousa uma mosca.
Em 1948 Penn viajou para o Peru. Em Cuzco, alugou o estúdio de um fotógrafo local e, somente, com a luz natural que iluminava aquele espaço, produziu uma série de retratos dos moradores da cidade e do entorno. Ali, o fotógrafo de moda buscou e encontrou outros modos de representar pessoas. Anos depois, viajou para Marrocos, Nova Guiné, Dahomey (hoje Benin), carregando equipamentos e uma simples tenda para ser utilizada como fundo. Com um olhar antropológico, fotografou os habitantes nativos desses lugares. Algumas dessas séries foram reproduzidas em matérias para a Vogue.
Há, ainda a série “Small Trades” (Pequenos Ofícios), com fotografias intimistas de operários, artesãos, comerciantes e lojistas, que lembram o alemão August Sander e sua vasta tipologia “Pessoas do Século XX”, realizada nas décadas de 1910-1920. A exposição contempla também alguns de seus últimos trabalhos, muitos dos quais em cores.
Se o fotógrafo admira-se com a câmera, nós nos admiramos com as imagens que produziu com seu precioso instrumento. Se, como afirmou Hélio Oiticica, “o q faço é música”, para Irving Penn, as Rolleiflex e Hasselblads são seus Stradivarius e Steinways. E, na ampla retrospectiva apresentada na C/O Berlin, fica claro que são também delicados, porém afiados bisturis que dissecam não o corpo humano mas sua mais profunda alma.
Andreas Valentin é fotógrafo, pesquisador e curador. Doutor em História Social (UFRJ), com uma pesquisa sobre a fotografia amazônica do alemão George Huebner (1862-1935). Mestre em Ciência da Arte (UFF) e graduado em História da Arte e Cinema (Swarthmore College, Pennsylvania, EUA). É professor-adjunto de Fotografia e História da Arte (UERJ). Atualmente está em Berlin montando sua exposição “Berlin<>Rio: Spurenund Erinnerungen”, que inaugura em 3 de maio no Haus am Kleistpark.