Existe Papai Noel? Sim, azul!

Por Andreas Valentin

Am farbigen Abglanz haben wir das Leben.

 “Nos reflexos coloridos temos a vida”. Pronunciadas por Fausto, na obra de mesmo nome de  J. W. Goethe, essa frase sintetiza a importância da cor. Sem cor não há vida. Onde não há vida, na morte, também não existe cor. Em Parintins, Amazonas, cores regem a vida das pessoas e se destacam no cotidiano da cidade. Lá é a terra do vermelho do Boi-bumbá Garantido e do azul do Caprichoso. Os dois grupos folclóricos rivais foram criados há mais de cem anos e há algumas décadas encenam no último final de semana de junho um grandioso espetáculo na arena do Bumbódromo.

O Boi Garantido ganha vida na arena do Bumbódromo (foto Andreas Valentin, 2001).

O Boi Garantido ganha vida na arena do Bumbódromo (foto Andreas Valentin, 2001).

Ritual do Boi Caprichoso na arena do Bumbódromo; ao fundo marca da Coca-Cola em azul e em vermelho. (foto Andreas Valentin, 2000).

Ritual do Boi Caprichoso na arena do Bumbódromo; ao fundo marca da Coca-Cola em azul e em vermelho. (foto Andreas Valentin, 2000).

As cores adotadas por Caprichoso e Garantido e que, ao longo do tempo, foram marcando cada vez mais seus territórios e suas identidades, formam um sistema funcional para a celebração de sua histórica rivalidade. Cores provocam sensações físicas, despertam emoções e afetam a alma. Em Do espiritual na arte, Wassily Kandinsky relata que “quanto mais cultivado é o espírito sobre o qual (a cor) se exerce, mais profunda é a emoção que essa ação elementar provoca na alma. Ela é reforçada, nesse caso, por uma segunda ação psíquica. A cor provoca, portanto, uma vibração psíquica. E seu efeito físico superficial é apenas, em suma, o caminho que lhe serve para atingir a alma”[i].

Assim, moradores da cidade, torcedores de um ou de outro Boi adotam no seu dia-a-dia as cores de sua predileção. Como, por exemplo, Mariangela Faria, matriarca de uma tradicional família Garantido. Durante mais de 30 anos pintava e repintava sua casa de vermelho e branco, por dentro e por fora. Perguntada por quê, respondia: “A cor vermelha é alegria, vida. Vermelho dá saúde, dá vontade da gente viver. Eu digo que a cor vermelha é uma celebração à vida. É uma cor bonita e eu me sinto bem de vermelho”. E por que renovar sempre a pintura? “Porque desbota, precisa dar uma vida nova. Vermelho desbotado fica triste”.

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A cozinha e o quarto de Mariangela Faria (fotos Andreas Valentin, 2002).

A cozinha e o quarto de Mariangela Faria (fotos Andreas Valentin, 2002).

Já o ateliê de Juarez Lima, um dos principais artistas do Caprichoso, era pintado de azul. Para ele, “o azul acalma a alma e é bom para criar. É uma cor que fascina. O horizonte é azul, as paisagens se completam com o azul”. Kandinsky também tinha uma afeição especial pelo azul, “a cor tipicamente celeste (que) apazigua e acalma ao se aprofundar. (...) O azul profundo atrai o homem para o infinito, desperta nele o desejo de pureza e uma sede de sobrenatural”. Ao se associar ao céu, o azul assume, portanto, conotações divinas. Na arte bizantina, é a cor que representava os santos. Já o vermelho “é a cor sem limites, essencialmente quente” que trabalha sobre o nosso interior como uma “cor transbordante de vida ardente e agitada”. Evoca “força, impetuosidade, energia, decisão, alegria e triunfo” (...) Como uma paixão que arde com regularidade, contém uma força segura de si que não se deixa facilmente recobrir”. Acrescenta-se, ainda, que nas línguas indo-europeias “vermelho”, relaciona-se com sangue e, assim, também com a vida. Red, rouge, rot, rosso derivam do sânscrito rudhira que significa sangue.[i]

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Parintinense garantido pintando de vermelho a cerca da casa de sua filha caprichosa (foto Andreas Valentin, 2001).


Com que barco eu vou? (foto Andreas Valentin, 1999)

Com que barco eu vou? (foto Andreas Valentin, 1999)

O código cromático dos Bois não só reflete diretamente a rivalidade, como trabalha, ainda, de maneira inversa, alimentando-a. Empresas apoiadoras do Festival de Parintins, como por exemplo, Coca Cola e Bradesco, precisaram adaptar suas identidades visuais para atender às exigências dos Bois rivais.

Em Parintins, o vermelho da marca de um banco precisa ter uma versão em azul (foto Andreas Valentin, 2002).

Em Parintins, o vermelho da marca de um banco precisa ter uma versão em azul (foto Andreas Valentin, 2002).

 

Durante quase dez anos pesquisei e fotografei Parintins, seu Festival, a cidade e seus moradores. Através da fotografia, procurei traduzir a rivalidade que é celebrada nas três noites de apresentações e que salta aos olhos nas ruas e nos hábitos parintinenses. Lá, “o fotógrafo é envolvido numa teia de estímulos sensíveis que transmitem uma energia radiante. Captada por seu olhar, ela traduz-se em um conjunto de imagens igualmente fortes e reveladoras de um fenômeno peculiar”.[i]

Em Parintins, a brincadeira da rivalidade (foto Andreas Valentin, 2001).

Em Parintins, a brincadeira da rivalidade (foto Andreas Valentin, 2001).

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Não consegui ainda, no entanto, fotografar um Papai Noel azul. Ouvia dizer que ele existia, mas nunca o encontrei. Neste Natal de 2018, um amigo de um colega fotógrafo de Parintins o avistou numa festa em uma casa caprichosa. Bateu uma foto e ele desapareceu. Seria ele também um mito, como a Cobra Grande e o Mapinguari, que ganham vida e cores no Festival de Parintins?

Papai Noel azul (foto Aires Fernandes, 2018). agradecimentos a Paulo Sicsu.

Papai Noel azul (foto Aires Fernandes, 2018). agradecimentos a Paulo Sicsu.


 

[i] Kandinsky, Wassily, Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, págs. 96-98.

[i] Gage, John, Color and culture. Berkeley: University of California Press, 1999, pág. 110.

[i] Valentin, Andreas, Contrários: a celebração da rivalidade dos Bois-bumbás de Parintins. Manaus: Ed. Valer, 2005.


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Andreas Valentin é fotógrafo, pesquisador e curador. Doutor em História Social (UFRJ), com uma pesquisa sobre a fotografia amazônica do alemão George Huebner (1862-1935). Mestre em Ciência da Arte (UFF) e graduado em História da Arte e Cinema (Swarthmore College, Pennsylvania, EUA). É professor-adjunto de Fotografia e História da Arte (UERJ). Sua exposição “Berlin<>Rio: Spuren und Erinnerungen”, inaugurou no Haus am Kleistpark, Berlin, em 3 de maio e ficará em cartaz até 12 de agosto de 2018.

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