Sobre o processo artístico de artistas imigrantes

Por Ioana Mello

foto elsa leydier #elenão, 2018

foto elsa leydier #elenão, 2018

A experiência de viver fora do Brasil por um tempo me fez pensar nessa categoria específica de “artista imigrante”. Mas precisamente: o que muda na abordagem artística quando se escolhe viver em outro país? Diz a psicologia que é somente diante do outro que reconhecemos a nós mesmos. Talvez esse seja o processo pelo qual passam os artistas que imigram. Uma jornada que começa em uma perda no outro, para então nos voltarmos a nós mesmos.

A arte pode ter uma função deliberativa, estimulando a reflexão sobre a identidade coletiva. É uma espécie de “viagem” especial e particular, com questionamentos que perpassam identidade, história, pertencimento e origens. É também um movimento paradoxal de se individualizar e ao mesmo tempo procurar comunidades que compartilhem os mesmo códigos. Como uma ação de edição imaterial: o que assimilar de cada cultura.

Mas em vez de divagar, proponho apresentar alguns fotógrafos imigrantes, dois franceses no Brasil e um brasileiro na França, para expandirmos essa discussão.

Foto shinji nagabe, imersão, 2016)

Foto shinji nagabe, imersão, 2016)

Shinji Nagabe

Shinji Nagabe é nissei mas como vemos em seu trabalho, ele perpassa essa etiqueta. De origem paranaense, e tendo crescido em São Paulo, o que distingue Shinji são seus dois pilares culturais que transbordam em suas imagens. Já adulto, Shinji sai do Brasil e imigra para França. Ele então começa a criar em cima desse processo de transição para um novo país, que se desdobra em um descobrimento íntimo e um reencontro com a fotografia.

 Entre 2015 e 2018, o artista viaja sete vezes ao Brasil para fotografar. Em suas imagens percebemos o sincretismo brasileiro e o carnaval de rua mas também o universo lúdico do autor japonês Haruki Murakami e a estética do filme “Sonhos” de Akira Kurosawa. São retratos coloridos, cheios de acessórios e próximos a realidade local. Por outro lado, são também fantasiosos, sutis e discretos, sem mostrar o olhar dos retratados perpassam questionamentos identitários comuns a todos.

foto shinji nagabe, itabanhana, 2015

foto shinji nagabe, itabanhana, 2015

Elsa Leydier

 A fotógrafa francesa Elsa Leydier resolveu se mudar para o Brasil há alguns anos. E escolheu a fotografia para viver esse deslocamento territorial e identitário. Fugindo das imagens clichês das viagens turísticas que fazem os europeus, Elsa se interessa pelo o que não é mostrado. Suas imagens se propõem a discutir de maneira pouco glamorosa a complexidade da cultura brasileira. Como sua série “Esgotados” (2014), que mostra imagens de cartões postais de índios em uma colagem com selos comemorativos da Copa do Mundo no Brasil. Uma crítica à ganância dos jogos de futebol e a pouca importância dada à cultura tradicional indígena

Falar da cultura do outro, de uma história que você acabou de adentrar, também é um processo difícil. É uma ação de criar seu trabalho no país do outro, que agora é seu, sobre o outro e você mesmo, quebrando os limites e as fronteiras. Coisas que na arte nunca deveriam existir.

foto elsa leydier, esgotados, 2014

foto elsa leydier, esgotados, 2014

Vincent Rosenblatt

 Um dos franceses mais cariocas que conheço, Vincent Rosenblatt chegou ao Rio em 2005 meio por acaso, depois de uma experiência de intercâmbio durante a faculdade. Desde então Vincent se apaixonou pelo funk carioca e virou o fotógrafo oficial dos bailes da periferia. Mas Vincent, como todo fotógrafo, teve que se familiarizar com os códigos do seu novo tema.  Precisou encontrar os djs e as pessoas certas que fizessem as introduções necessárias entre os diferentes poderes paralelos. Do seu lado começou a entender a cultura do funk, suas letras, seus MCS e toda a produção por trás dessa expressão cultural marginalizada. 

Aqui é interessante perceber, que mesmo os cariocas não alcançam as bases da cultura funk, sendo para muitos um outro país, mesmo que dentro da mesma cidade. A presença de Vincent nos bailes seguiu o imaginário coletivo: que os bailes são sinônimo de violência, contra a moral e os bons costumes. E várias pessoas criticaram o fotógrafo: quem é esse gringo na comunidade fotografando (por quê? para quê? para quem?). Ser o fotógrafo imigrante no baile funk carrega o estigma do gringo pervertido fotografando a putaria do funk carioca. De que maneira as obras de Vincent só foram possíveis por ele estar no Rio de Janeiro? Criando obras que existem justamente porque os códigos se alargam, porque o artista é de um lugar e agora está em outro.

foto Vincent rosenblatt, rio baile funk

foto Vincent rosenblatt, rio baile funk


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Ioana Mello é carioca, mora em Paris e desde sua formação dedicou-se a imagem e suas diferentes relações em nossa sociedade. É sobretudo uma apaixonada por fotografia trabalhando a mídia em festivais, galerias, salas de aula ou escrevendo em seu site photolimits.com

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