Fala tu, favela
Por Luiz Baltar
Reprodução Maré Vive
Como estamos hoje? Como andam nossas Comunidades?
Manhã do dia 20 de junho, às 09:35, a página Maré Vive avisa pelo Facebook que mais uma operação policial está acontecendo na Maré: "Como estamos pessoal? Cuidado especial para quem mora em casa de telha. Muitos tiros vindo de cima." Rapidamente os moradores da Vila Pinheiro, Vila do João e Conjunto Esperança, entre outras comunidades, compartilham a postagem e comentam a ação da polícia. A intenção é informar vizinhos e familiares que precisam entrar ou sair da favela "Esse Helicóptero é sem noção!!! A quantidade de gente na rua indo trabalhar, crianças na escola. Deus tenha misericórdia e olhe por todos nós!", "Nossa! o caveirão aéreo tá dando muito tiro, meu Deus, moro perto do colégio… as crianças estavam brincando na quadra quando ouviram, foi muita gritaria… que Deus proteja elas!"
Entre os que precisam sair da Maré, está Alice Lopes, duplamente atingida pelo Estado. Nesse dia ela recebeu a notícia que estouraram o depósito na Praça Tiradentes onde guarda o seu carrinho. Desesperada, ela sente como se uma das balas do tiroteio tivesse acertado seu peito. "Não é só um carrinho e umas mercadorias, é literalmente o meu ganha pão. Com ele eu posso ter onde morar, pois é com ele que pago meu aluguel e tenho a certeza que vou ter como alimentar minha mãe, minha sobrinha e suas 2 filhas que moram comigo. O que dizer para uma criança com fome? Desesperada com essa situação você se arruma para sair de casa e tentar salvar suas coisas. Consegue? Claro que não! Passa o helicóptero atirando para lembrar que não dá para sair de casa. Chorar é a única coisa que dá pra fazer."
Foto: Luiz Baltar
Barulho apavorante
Os moradores seguem postando mensagens de alerta "Estava na ciclovia com minha filha de 10 meses, gente que absurdo! saí correndo no desespero" "Eles voltaram de novo dando muito tiro aqui na frente da minha casa, meu filho de 1 ano acordou gritando com um tiro que pegou na laje aqui de casa". A operação continua, além do caveirão aéreo os policiais a pé gritam ameaças pelas ruas da comunidade, repetindo a declaração de guerra feita na TV pelo delegado "consultor de segurança" de um telejornal do Rio: “Não adianta postar no Facebook que tem criança baleada na Favela”, “Nós vamos manchar o ambiente com o sangue sujo de vocês”
Foto: Luiz Baltar
Surgem então mensagens sobre um adolescente baleado com uniforme escolar. Bruna não tinha ido trabalhar como diarista e saiu em busca do seu filho Marcus Vinicius. Chegando na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), encontra Marcus ainda vivo que diz: “Mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou. Foi um blindado mãe... não viu minha roupa de escola.” Bruna espera por uma hora a chegada da ambulância que levaria seu filho da UPA para o atendimento em um hospital de emergência, até saber que a polícia não permitiu a entrada da ambulância, somente após ordens superiores e a ambulância pode finalmente entrar. Carregada de emoção Bruna conta: “mas ele já estava roxo, estava morrendo na minha frente. Me disse mãe, eu nunca mais quero sentir essa dor na minha vida. Pedi para ele ficar quietinho, não falar, "pra" não entrar ar. Ele repetia Mãe, eu tô com sede; Meu filho morreu com sede"
+AMOR +TOLERÂNCIA - ÓDIO Toda VIDA é importante!
A mancha de sangue no uniforme de Marcus Vinicius é mais uma das imagens icônicas criadas pelo desprezo das forças de segurança pelas vidas dos moradores de favelas. Há quase 10 anos, 05/12/2008, o menino Matheus Rodrigues Carvalho, 8 anos, saía de casa, na Baixa do Sapateiro, Maré, para comprar pão quando foi atingido por um tiro de fuzil na cabeça, morrendo na hora. Sua mãe, Gracilene, ainda conseguiu ver um policial afastando-se da rua. A polícia logo apresentou a versão de que no momento havia uma troca de tiros entre traficantes, mas moradores relataram que não havia tiroteio na hora. Moradores protestaram fechando avenidas e exigindo a presença da perícia, que só constatou a existência do projétil que matara Matheus, jogando por terra a versão da polícia. A foto da pequena mão ensangüentada de Matheus ainda segurando a moeda com que ia comprar pão foi feita por Naldinho Lourenço, fotógrafo e um dos mais ativos comunicadores populares da Maré. Publicada em vários jornais, a foto tornou-se símbolo da matança realizada pelo Estado nas favelas do Rio.
Foto: Naldinho Lourenço
Um dos fatores que permite que essa calamidade perdure é a impunidade dos policiais e outros agentes do Estado que cometem crimes graves, como foram as mortes de Eduardo (Alemão), Maria Eduarda (Acari), Sofia (Irajá), Paulo Henrique (Alemão), Vanessa Vitoria (Camarista), o bebê Arthur (Duque de Caxias), Jeremias (Maré), entre dezenas de outras que são tratadas como “Trágicos Incidentes” ou “efeitos colaterais” nos pronunciamentos oficiais das polícias, mas servem para vender jornais e virarem espetáculo televisivo durante alguns dias para em seguida serem esquecidos pelo grande público. As mortes de crianças nas favelas vão se tornando comum e deixando de ser novidade.
Foto: Luiz Baltar
Uma pesquisa realizada pela Anistia Internacional em 2012 mostra que 30 mil jovens foram assassinados no Brasil. Desse total, 77% são jovens negros moradores de periferia. Números tão altos, segundo a Anistia, apontam para uma política de criminalização da pobreza e da indiferença da sociedade em torno de um "genocídio silenciado" que muitas vezes fica impune, já que menos de 8% dos homicídios no Brasil viram processo criminal. Inquéritos abertos se arrastam por anos, sem justa reparação para as famílias.
Foto: Luiz Baltar
Fala tu, Favela!
Atualmente muitos projetos de fotografia contemporânea pretendem discutir ou apenas chamar a atenção dos que frequentam o circuito de artes para o genocídio da juventude negra. São experiências subjetivas compartilhadas com um público, que em grande parte, tem entendimento superficial sobre o tema.
“Lugar de fala” é um termo usado com muita frequência por ativistas sociais e junto com “empoderamento” causa muitos aborrecimentos aos que se afetam com as lutas por afirmação das ditas minorias. O conceito “lugar de fala” representa a busca pelo fim das mediações, é utilizado por grupos que historicamente têm menos espaço para falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou seja, a legitimidade - para falar sobre o racismo; mulheres sobre o feminismo; transexuais sobre a transfobia e assim por diante.
O problema de falar pelos outros é acentuar o silenciamento da voz das minorias sociais. Muitas vezes quem tem acesso a espaços de debate público, ignora a enorme e potente produção feitas nas periferias, por produtores que são marginalizados de muitas maneiras. Um trabalho verdadeiramente comprometido com a transformação social deve, antes de tudo, saber a hora de calar para conseguir ouvir.
Foto: Luiz Baltar
Quem grita?
São muitos movimentos, organizações, coletivos, fotógrafos e fotógrafas, documentaristas, educadores, artistas, poetas etc que precisam ser conhecidos, que necessitamos ouvir. Estão na luta pelo direito à vida, contra o extermínio da juventude negra, criando novas formas de representar seus territórios, contribuindo para desconstruir os estigmas de violência do lugar onde moram e a desumanização do seu povo. Disputam o imaginário das periferias através de discursos, imagens e eventos.
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Luiz Baltar trabalha como fotógrafo documentarista e desenvolve projetos autorais no campo da arte contemporânea. Acredita na fotografia como forma de expressão ativista e crítica, daí sua busca em estabelecer um diálogo entre fotografia e questões sociais, sobretudo no que diz respeito ao olhar sobre a cidade.