O olhar feminino das favelas
Por Luiz Baltar
Dia de verão, roupas leves, ar pesado e muito calor. A mangueira que molha o chão tem a intenção de não deixar que a terra seca entre em casa, mas transforma em festa o quintal. Correria, tombos e muitas risadas. As mulheres da família, sentadas na sombra do quintal, acabam contagiadas com tanta alegria. Dá para imaginar o som das gargalhadas ecoando das lembranças despertadas pela foto exibida no teatro Mário Lago para todos os presentes no Encontro Favelas em Foto.
Foto: Thais Alvarenga
A imagem tão bela e leve vai ganhando importância à medida que vamos descobrindo alguns detalhes. A menina que desperta o nosso desejo de estar ali, sentindo as gotas finas de água batendo no rosto, é sobrinha da fotógrafa e filha de quem compartilha conosco lembranças e reflexões. Edna Gomes, ao falar com orgulho sobre a foto diz:
“Essa é uma das primeiras fotos que a Thais fez lá no quintal, com um efeito assim "diferente" e a gente começou a ver uma diferença no trabalho da Thaís, a família criticava um pouco por não entender por que ela fotografava, não via como ela poderia ganhar dinheiro e sobreviver, mas essa foto ficou marcante e a Thais a coloca em todos os trabalhos e exposições, a Júlia (menina da foto) sempre fala "Sou eu, mãe!" E soa diferente para gente, porque tem toda uma história, tem um peso nessa foto. A preocupação que a gente tinha com a Thais, enquanto família, era entender a profissão que ela tinha escolhido...Hoje eu sei da importância do seu trabalho.”
As dificuldades iniciais da família, ao saber que se tornaria fotógrafa, era pela expectativa que ela trabalharia com festas de aniversário, casamento, bebês... e assim ganharia dinheiro. Mas não foi esse o caminho que Thais buscou.
Foto: Thais Alvarenga
Thais Alvarenga nasceu em Vila Kennedy, na zona oeste do Rio de janeiro, é filha de um gari e de uma diarista. Em sua casa havia poucas fotografias, nenhuma que guardasse fotos antigas da Vila Kennedy. Ao entrar na Escola de Fotógrafos Populares (EFP), um projeto idealizado por João Roberto Ripper na favela da Maré, Thais se identificou com a proposta de documentar a cidade sob ponto de vista dela. Em homenagem ao seu pai, apresentou como trabalho de conclusão de curso na EFP o ensaio "Só limpeza", sobre um grupo de samba formado por garis e funcionários da Comlurb (Companhia de Limpeza urbana do Rio de Janeiro).
Desde então, a preocupação com a construção de memória de seu bairro foi amadurecendo em Thais. O trabalho de documentação humanista deu a ela a consciência do lugar que ocupava em uma sociedade excludente, para a fotógrafa “a intenção ‘deles’ é não deixar a gente sonhar, é fazer a gente ficar em casa, aniquilado. Por isso, procuro fazer fotos de mulheres negras e idosas. A gente não acredita que pode ser bonito, pois nossa autoestima está destruída. Precisamos mudar essa realidade e eu acredito que o meu trabalho se propõe a isso”.
Foto: Thais Alvarenga
Pensar a fotografia em Vila Kennedy realmente é fazer relações com a trajetória de alguns fotógrafos como Thais Alvarenga e Léo Lopes, também presente apresentando seu trabalho no Favelas em Foto. Não porque eles sejam pioneiros na área, mas por assumirem um papel importante na articulação da documentação feita em Vila Kennedy e Vila Aliança com outras áreas da cidade. Eles trazem essas imagens para o debate de fotografia popular em outros espaços, não apenas na Zona Oeste e estabelecem uma ponte com o resto da cidade, desde as demandas do bairro até as imagens de beleza e cotidiano na região.
Foto: Thais Alvarenga
Um lugar tão em evidência no noticiário atual devido aos indicadores de violência, esquecido pelo Estado e por políticas públicas, é cenário de imagens afetivas que remetem a uma infância livre pelas ruas da Vila Kennedy.
Existe beleza em Vila Kennedy. Mais que isso, existe quem se dedica a documentar e compartilhar essa beleza como forma de ativismo.
Foto: Elana Paulino
Na zona sul do Rio, ao pegar o elevador do plano inclinado para vencer os 780 degraus do morro Santa Marta, um dos passageiros é abordado pela ascensorista com perguntas sobre fotografia. Desconfiado, pergunta por que ela acha que ele é fotógrafo. "Pela tatuagem de diafragma que você tem no braço", responde sorrindo. Ao perceber o desconforto do colega diz: "sou fotógrafa também!".
Elana Paulino nos conta esse pequeno “causo” para em seguida, emocionada, falar sobre sua história de paixão, e de muita superação, pela fotografia. O passageiro espantado e incrédulo era publicitário e mais tarde l, talvez motivado por esse espanto, iria dar início a um projeto chamado Favelagrafia.
Foto: Elana Paulino
Elana sempre se interessou por fotografia. Em sua casa havia muitas fotos e uma câmera analógica. Quando adolescente trabalhava tomando conta de crianças, ganhava R$50, usava a metade para ajudar nas despesas da casa e a outra parte gastava com filmes e revelação, mas só conseguiu estudar fotografia em 2013, quando o SENAC ofereceu um curso gratuito na Rocinha. Nessa época trabalhava como ascensorista no plano inclinado. Seu maior interesse na fotografia era poder trabalhar com festas infantis e fotografia de bebês. Existem muitos fotógrafos no Santa Marta, mas não atuam coletivamente para documentar a comunidade, como acontece em outras favelas com tradição de comunicação popular, onde há troca de experiências. Foi através do projeto Favelagrafia que Elana descobriu seu talento de cronista visual e viu as fotos que fazia, sem nenhuma pretensão, serem valorizadas, publicadas em livro e exibidas no MAM (Museu de Moderna Arte do Rio).
Foto: Elana Paulino
A trajetória de Elana guarda semelhanças com a de outras mulheres que deixaram seus depoimentos nos encontros Favelas em Fotos que aconteceram na Providência, Vila Kennedy, Manguinhos e Santa Marta. Para todas a fotografia foi, também, uma ferramenta de transformação. Ao reconhecer beleza no que fotografavam, percebiam que estavam dando significado à própria vida.
Luiz Baltar trabalha como fotógrafo documentarista e desenvolve projetos autorais no campo da arte contemporânea. Acredita na fotografia como forma de expressão ativista e crítica, daí sua busca em estabelecer um diálogo entre fotografia e questões sociais, sobretudo no que diz respeito ao olhar sobre a cidade.